O SÍNDROMA DO CLUBE PEQUENO
Acreditem ou não, eu já tinha este texto praticamente escrito na minha cabeça antes de ter visto o Estoril-FC Porto. Fosse qual fosse o desfecho do jogo, mesmo uma vitória portista, já tinha decidido proceder a uma análise, não propriamente abonatória, do desempenho do novo treinador do FC Porto, Paulo Fonseca. O empate no Estoril não mudou nada na minha maneira de ver — antes pelo contrário, apenas serviu para confirmar a razão das críticas que tenho a fazer.
Para começar, não tenho dúvidas de que Paulo Fonseca deve ser um excelente treinador. Alguém que leva o Paços de Ferreira a um terceiro lugar no campeonato, só pode sê-lo. Um grande treinador - para um Paços de Ferreira. E aí é que está o problema: um grande treinador para um Paços de Ferreira não é necessariamente um grande treinador para um FC Porto. Pode vir a se-lo ou não, conforme consiga evoluir perante realidades absolutamente diferentes. São culturas, estratégias de liderança, rotinas de ambições radicalmente diferentes. Nos últimos anos, Pinto da Costa optou por apostar em treinadores reunindo três características comuns: portugueses, jovens e sem curriculum à altura de um grande clube europeu, como o é o FC Porto. Acreditou que o clube faria o homem, que o balneário faria a equipa, que a estrutura faria o sucesso. Vilas Boas haveria de assinar um ano com um pleno de sucessos irrepetível e exemplar. Quando ele partiu subitamente, Pinto da Costa resolveu que a fórmula era de sucesso garantido e apostou em Vítor Pereira. E Vítor Pereira ganhou, de facto, mais dois títulos, embora tenha falhado na Europa, tenha feito desertar do Dragão uns milhares de amantes do futebol (eu incluído) e tenha enterrado vários jovens destilando talento bruto e a quem não deu uma hipótese. Foi-se e veio Paulo Fonseca, que, pessoalmente, acolhi com a esperança com que teria acolhido qualquer um que não fosse Vítor Pereira, outra vez. Passados dois meses e sete jogos oficiais, e apesar de seis vitórias e um empate, constato que, tanto a Vítor Pereira como a Paulo Fonseca, falta-lhes aquilo que fazia a diferença em André Vilas Boas: mais mundo, mais cultura, mais paixão pelo grande futebol, mais atracção pelo risco, mais respeito pelos grandes jogadores em detrimento dos banais carregadores de piano. Enfim, mais ambição, mais horizonte.
Para ser justo, devo, porém, dizer que não critico essa falta de cultura de um grande a Paulo Fonseca. É legítimo e natural que ele precise de um período, mais ou menos longo, de habituação a um mundo radicalmente diferente daquele de onde veio. O problema é que, se ele tem o direito de exigir um período de aprendizagem e habituação, o FC Porto não tem esse tempo a perder. E o ponto está, portanto, em saber se ele está disposto a queimar etapas, percebendo que a realidade onde caiu é superior à sua própria, ou se vai continuar teimosamente a insistir, esperando que um dia a sua realidade coincida com a do clube.
Paulo Fonseca tem dois caminhos. Ou achar que os resultados só abonam a seu favor — seis vitórias e um empate em sete jogos, a Supertaça conquistada e uma vitória fora a abrir a Champions - o que é um facto incontestável e, a todos os títulos, positivo; ou perceber que, dessas sete vitórias, apenas uma, a da Supertaça, correspondeu a uma boa exibição, sendo em todas as outras o resultado melhor que a exibição, como o fez notar o antigo capitão portista Rodolfo Reis. Se, depois do miserável desempenho da equipa em Viena (para que ele só acordou depois de 48 horas a escutar críticas), Paulo Fonseca ainda não sente as campainhas de alarme a tocar, então temos aqui um caso sério. E, a avaliar pela equipa que meteu na Amoreira e a forma como se deixou paralisar pelos acontecimentos, não percebeu mesmo.
São vários os sinais onde vejo a mentalidade de um treinador de equipa pequena, que ainda não realizou que está num outro mundo, de exigências e estratégias. Por exemplo:
- ter dito, a seguir ao jogo de Viena, que o FC Porto fez «uma grande segunda parte». Não fez: fez o mínimo para ganhar e sofreu até ao fim para segurar uma vitória frente a uma equipa que duvido que tivesse lugar na liga portuguesa. E depois de uma primeira parte em que a sua equipa parecia um grupo de excursionistas em visita à Áustria, sem qualquer estratégia nem sombra de profissionalismo. Não apenas mau futebol: falta de classe, de ambição, de direcção e comando. Temo o pior quando os adversários forem o Atlético de Madrid e o Zenit;
- ter-se queixado do incómodo dos jogos europeus a meio da semana, uma queixa típica de treinador de equipa pequena e que não augura nada de bom;
- a sua insistência em jogar sempre com os mesmos, revelando a mentalidade de um treinador de curtas ambições, que nunca mexe no onze que ganha e que só confia nos seus eleitos. Como já aqui o escrevi, isso não apenas torna pior e mais pequenina a equipe, como também defrauda o clube: o FC Porto investiu mais de 20 milhões esta época numa dúzia de novos jogadores e o único que tem lugar na equipa é o Licá. Herrera custou 8,5 milhões e, apesar dos míseros minutos que Paulo Fonseca lhe concedeu, já deu para ver que é infinitamente melhor que o Fernando: não faz uma falta em cada dois desarmes, não faz passes à toa, não fica barata tonta quando se aproxima da área adversária e, caramba, sabe dominar uma bola sem a adiantar sistematicamente. Quintero custou uns 7 milhões, foi um achado, é um génio em potência, que os adeptos reconhecem mas que o treinador e alguns inteligentes acham que «não encaixa no sistema de jogo da equipa», e, por isso, está condenado a ver jogar alguém tão banal e inócuo como o Defour. Jorge Jesus (que, um pouco atrasado, acabou por se render ao génio de Markovic), disse que os rebeldes devem gozar de direitos especiais em campo. Mas, para os treinadores que ainda não evoluíram da mentalidade de comandantes de equipas pequenas, é exactamente ao contrário: na sua primeira época, Vítor Pereira dava 15 minutos ao James para ele lhe resolver os jogos — se não resolvia, saía da equipe (mas foi ele, transportado à pressa de Miami, que lhe resolveu esse campeonato, no jogo da Luz). Paulo Fonseca faz o mesmo com Quintero: quando está em desespero, como em Setúbal ou no Estoril, recorre a ele. Os génios, como James ou Quintero, têm 15 minutos para resolver; mas Defour, Fernando ou Varela (todos três com prestações confrangedoras na Amoreira e os dois primeiros também em Viena), têm lugar cativo em todos os jogos. Na mesma linha e, de uma assentada, livrou-se de três extremos rebeldes (Atsu, Iturbe e Kelvin), deixando o jogo ofensivo lateral entregue a Licá, que não é um extremo clássico, e Varela, que não é nada - e por isso é que a bola não chega a Jackson em condições de finalização;
- enfim, o último sinal da mentalidade Paços de Ferreira de Paulo Fonseca é a insistência no célebre triângulo invertido do meio-campo, o 4x2xlx3, de que pretende fazer a sua imagem de marca. Como aqui escrevi logo no início da época, não entendo a vantagem de construir um meio-campo de raiz defensiva e uma equipa em que sete jogadores têm funções predominantemente defensivas, quando se sabe que em 80% do tempo de cada jogo o FC Porto tem de fazer as despesas do ataque, frequentemente contra equipas todas fechadas atrás da linha da bola. O sistema é bom para o Lucho, que fica mais liberto na frente e é mais poupado, mas deixa um vazio na zona de construção ofensiva do meio-campo, que ninguém preenche: o Lucho porque está lá na frente e os outros porque, além de não terem talento nem vocação para isso, estão lá atrás. Isto foi gritantemente visível em Viena, onde, na ausência do Defour, Josué foi sacrificado a uma função que não é a sua, com a consequência de metade das saídas da equipa para o ataque terem terminado com atrasos de bola ao Helton. Mas se o sistema condena jogadores como Josué ou Quintero ao desterro, em campo ou no banco, a mim parece-me que o que está errado não são os jogadores, mas o sistema. Imaginado para um Paços de Ferreira, mas não para um FC Porto. Com o devido respeito.