1- Não sei quantas vezes Eusébio terá sido operado ao seu fatal joelho esquerdo: umas seis ou sete, talvez. Eram cirurgias que, quando comparadas com as de hoje, mais pareciam de soldados da 1.ª Guerra Mundial do que de profissionais de desporto, mesmo há cinquenta anos atrás. Nesse tempo, os jornais escreviam invariavelmente que, no dia seguinte aos jogos, recuperavam-se os atletas com «banhos e massagens» - e Luciano, jogador do Benfica, morreu electrocutado num desses banhos para relaxar. O futebol tirava os jogadores da miséria, antes de os devolver, em muitos casos, à miséria - depois de anos em que tinham dado tudo o que tinham por domingos de glória, mais do que por salários dignos. Não podiam mudar de clube, travados pela chamada «lei de opção» (que permitia a um clube manter ao seu serviço um jogador em fim de contrato, pagando apenas 10% da oferta concorrente que ele tivesse recebido) e, se pensavam em emigrar, com o acordo do clube e aceitando uma proposta milionária para ambas as partes, podia-lhes acontecer o mesmo que a Eusébio: ser chamado ao Professor Salazar para ouvi-lo declarar que era considerado «património nacional» e estava proibido de emigrar. Na década e meia de ouro de Eusébio da Silva Ferreira ao serviço do futebol português, não havia salários de mil vezes o ordenado mínimo, não havia direitos de imagem, não havia jactos privados ao serviço das suas conveniências, nem havia agentes ou empresários a gerir as suas carreiras, pois que não havia o que negociar nem carreiras propriamente ditas. Jogavam por amor ao jogo e à camisola - fosse este genuíno ou conformado. E, foram estes jogadores, esta geração de Eusébio, que conquistaram para os clubes a fidelidade dos adeptos, passada de pais para filhas, de que eles hoje ainda beneficiam. Nenhum outro, porém, conseguiu, corno Eusébio, ultrapassar as fronteiras do seu clube e do seu país: no auge dos anos de Eusébio, na década de sessenta, todos éramos, de uma maneira ou de outra, adeptos do Benfica e da Selecção dos Magriços. Não vale a pena procurar comparações, porque isso nunca mais existiu e nunca mais existirá. O futebol hoje é um negócio de jogadores, empresários e dirigentes e o que resta de paixão está apenas nos adeptos e cada vez menos. Por isso é que a noticia da morte de Eusébio, independentemente de todo o habitual e triste contágio de massas, conseguiu genuinamente unir na tristeza uma nação inteira - os que testemunharam o seu génio e o seu desumano talento com uma bola nos pés e os que apenas ouviram contar; os que sabem o que a sua morte significa e os que difusamente compreendem que este é também o luto por um tempo que o futebol não conhecerá nunca mais.
Acontece-me às vezes, quando vejo os campos de relva sintética que abundam em tantas escolas C+S,e tantas vezes sem ocupação,ou quando oiço pais, professores e alunos queixarem-se de que falhou o aquecimento central nas aulas, lembrar-me da minha primeira escola primária, numa aldeola da Serra do Marão, com todos os alunos da primeira à quarta classe juntos na mesma sala, encostados uns aos outros para não morrermos de frio, com uma só professora para todos, que não faltava a uma aula o ano inteiro, e lembrar-me do recreio, invariavelmente passado a jogar à bola, na lama e no frio, com uma bola feita de uma meia enrolando trapos ou, na ausência dela, jogando com pedras a fazer de bola (sim, pedras!). Ou então, quando lá fora nevava ou chovia tanto que não se podia jogar nada de semelhante a futebol, jogávamos ao pião debaixo do telheiro, pagando as partidas com cromos de jogadores, que saíam embrulhados nos rebuçados de tostão a dúzia (e com a certeza de que os cromos do nosso clube não apareceriam, na época seguinte, com as cores de outro). Nessas alturas, quando vejo tanto dinheiro público investido em tão pouco talento e gratidão, lembro-me também daquilo que o grande, o inesquecível Eusébio dos 5-3 à Coreia do Norte, que nasceu a jogar futebol num musseque poeirento de Lourenço Marques, disse um dia numa entrevista: «Não nos faltava nada.»
Voltei a ver o Eusébio, a entrevê-lo, há cerca de dois meses, na sala de espera de um hospital, «partido como o uyombe, reclinado sobre os joelhos», sozinho e adormecido. Pela enésima vez, não consegui impedir-me de pensar que, tivesse ele nascido vinte ou trinta anos mais tarde, para chegar a glória no tempo em que os génios do futebol se tornaram, por acréscimo, vedetas multimédia e milionários sem preço, a sua vida pós-futebol teria sido outra e bem mais agradável. Nos últimos anos, com Luís Filipe Viera, o Benfica tomou Eusébio a seu cargo e deu-lhe o mínimo de dignidade e bem-estar exigível perante quem deu ao clube mais do que qualquer outro. E isso, pelo menos, resgatou a ingratidão chocante que tinha sido o fim da carreira de Eusébio ao serviço do Benfica, depois de ter dado ao seu clube os maiores anos de glória de toda a sua existência: uma lesão mal curada e mesmo assim obrigado a jogar, infiltrado, anestesiado contra as dores, para que o Benfica não perdesse o dinheiro dos jogos de exibição, contratados com a condição de o Eusébio jogar; uma carreira assim terminada antes do tempo, seguida do exílio nos Estados Unidos, de terra em terra e de clube em clube qual artista de circo em digressão de fim de carreira, e depois a impossível ressurreição... pelo Beira-Mar! E, depois ainda, novo exílio americano e novo regresso para jogar pelo União de Tomar. Mas, nem então, nesses penosos e tristes anos, quando os benfiquistas viram o Eusébio jogar equipado de amarelo e preto, nem depois disso, alguma vez se ouviu a Eusébio uma palavra que fosse de recriminação sobre o tratamento que o seu clube e o seu país lhe deram.
Desejo que no próximo dia 20, quando Cristiano Ronaldo receber do Presidente da República a condecoração que lhe foi outorgada por serviços prestados ao país, se lembre do grande Eusébio da Silva Ferreira e da sua lição de humildade. Toda a juventude é efémera, toda a glória é passageira, todas as honrarias são traiçoeiras, toda a riqueza é perdida perante a miséria da morte. No fim de tudo, aquilo que resta é dizerem, de boca em boca: «Foi um homem bom.» E Eusébio foi isso também.
2- E porque os deuses não dormem em serviço, ou não seriam deuses, coincide que na próxima jornada do campeonato - domingo, no Estádio da Luz o Benfica receba o FC Porto, no primeiro dos dois jogos do título. Os mais antigos lembrar-se-ão de outros Benfica-Porto ali jogados, quando as forças em presença eram então completamente diversas e desequilibradas e muitas vezes tudo se decidia num duelo a dois entre o bombardeio incessante de Eusébio à baliza portista e os inacreditáveis voos do grande Américo, defendendo sozinho e sem luvas, a honra dos rapazes vindos da margem norte do Douro. O Benfica (L.F.Vieira empenhar-se-á pessoalmente nisso) irá prestar a Eusébio a última grande homenagem da sua vida. E o FC Porto (Pinto da Costa não falhará) encontrará maneira de, apesar das relações cortadas, apesar do ambiente de alta tensão do jogo, juntar o nome do FC Porto a essa homenagem. Outra coisa eu não espero. E outra coisa não seria digna de Eusébio.
Acontece-me às vezes, quando vejo os campos de relva sintética que abundam em tantas escolas C+S,e tantas vezes sem ocupação,ou quando oiço pais, professores e alunos queixarem-se de que falhou o aquecimento central nas aulas, lembrar-me da minha primeira escola primária, numa aldeola da Serra do Marão, com todos os alunos da primeira à quarta classe juntos na mesma sala, encostados uns aos outros para não morrermos de frio, com uma só professora para todos, que não faltava a uma aula o ano inteiro, e lembrar-me do recreio, invariavelmente passado a jogar à bola, na lama e no frio, com uma bola feita de uma meia enrolando trapos ou, na ausência dela, jogando com pedras a fazer de bola (sim, pedras!). Ou então, quando lá fora nevava ou chovia tanto que não se podia jogar nada de semelhante a futebol, jogávamos ao pião debaixo do telheiro, pagando as partidas com cromos de jogadores, que saíam embrulhados nos rebuçados de tostão a dúzia (e com a certeza de que os cromos do nosso clube não apareceriam, na época seguinte, com as cores de outro). Nessas alturas, quando vejo tanto dinheiro público investido em tão pouco talento e gratidão, lembro-me também daquilo que o grande, o inesquecível Eusébio dos 5-3 à Coreia do Norte, que nasceu a jogar futebol num musseque poeirento de Lourenço Marques, disse um dia numa entrevista: «Não nos faltava nada.»
Voltei a ver o Eusébio, a entrevê-lo, há cerca de dois meses, na sala de espera de um hospital, «partido como o uyombe, reclinado sobre os joelhos», sozinho e adormecido. Pela enésima vez, não consegui impedir-me de pensar que, tivesse ele nascido vinte ou trinta anos mais tarde, para chegar a glória no tempo em que os génios do futebol se tornaram, por acréscimo, vedetas multimédia e milionários sem preço, a sua vida pós-futebol teria sido outra e bem mais agradável. Nos últimos anos, com Luís Filipe Viera, o Benfica tomou Eusébio a seu cargo e deu-lhe o mínimo de dignidade e bem-estar exigível perante quem deu ao clube mais do que qualquer outro. E isso, pelo menos, resgatou a ingratidão chocante que tinha sido o fim da carreira de Eusébio ao serviço do Benfica, depois de ter dado ao seu clube os maiores anos de glória de toda a sua existência: uma lesão mal curada e mesmo assim obrigado a jogar, infiltrado, anestesiado contra as dores, para que o Benfica não perdesse o dinheiro dos jogos de exibição, contratados com a condição de o Eusébio jogar; uma carreira assim terminada antes do tempo, seguida do exílio nos Estados Unidos, de terra em terra e de clube em clube qual artista de circo em digressão de fim de carreira, e depois a impossível ressurreição... pelo Beira-Mar! E, depois ainda, novo exílio americano e novo regresso para jogar pelo União de Tomar. Mas, nem então, nesses penosos e tristes anos, quando os benfiquistas viram o Eusébio jogar equipado de amarelo e preto, nem depois disso, alguma vez se ouviu a Eusébio uma palavra que fosse de recriminação sobre o tratamento que o seu clube e o seu país lhe deram.
Desejo que no próximo dia 20, quando Cristiano Ronaldo receber do Presidente da República a condecoração que lhe foi outorgada por serviços prestados ao país, se lembre do grande Eusébio da Silva Ferreira e da sua lição de humildade. Toda a juventude é efémera, toda a glória é passageira, todas as honrarias são traiçoeiras, toda a riqueza é perdida perante a miséria da morte. No fim de tudo, aquilo que resta é dizerem, de boca em boca: «Foi um homem bom.» E Eusébio foi isso também.
2- E porque os deuses não dormem em serviço, ou não seriam deuses, coincide que na próxima jornada do campeonato - domingo, no Estádio da Luz o Benfica receba o FC Porto, no primeiro dos dois jogos do título. Os mais antigos lembrar-se-ão de outros Benfica-Porto ali jogados, quando as forças em presença eram então completamente diversas e desequilibradas e muitas vezes tudo se decidia num duelo a dois entre o bombardeio incessante de Eusébio à baliza portista e os inacreditáveis voos do grande Américo, defendendo sozinho e sem luvas, a honra dos rapazes vindos da margem norte do Douro. O Benfica (L.F.Vieira empenhar-se-á pessoalmente nisso) irá prestar a Eusébio a última grande homenagem da sua vida. E o FC Porto (Pinto da Costa não falhará) encontrará maneira de, apesar das relações cortadas, apesar do ambiente de alta tensão do jogo, juntar o nome do FC Porto a essa homenagem. Outra coisa eu não espero. E outra coisa não seria digna de Eusébio.
a abola