1- Razões de trabalho mantiveram-me no Brasil durante quase quinze dias, coincidentes com os dois jogos do play-off da Selecção Nacional, que vi através do canal brasileiro Sport TV. No jogo da Luz e até aos 82 minutos, vi Portugal fora do Mundial, em resultado de um jogo até aí absolutamente falho de ideias, de oportunidades e de categoria. Depois, aproveitando uma nesga de espaço inventada por ele próprio, Cristiano Ronaldo mergulhou à peixe para facturar o solitário golo do triunfo, que nos fez partir em decisiva vantagem para a segunda mão. No jogo da Suécia, que apenas consegui começar a ver a partir da segunda parte, percebeu-se o quanto o golo da Luz fora, de facto, determinante para a eliminatória. Obrigados a atacar e abrir espaços lá atrás, os suecos deixaram Cristiano Ronaldo solto para o que ele mais gosta e sabe fazer: jogar no contra-ataque, tirando partido da sua velocidade e do seu fabuloso pontapé. Em Espanha, onde estão proibidas as tácticas do autocarro defensivo, é assim que Ronaldo se sente como peixe na água e factura o número astronómico de golos que constam do seu registo. Com defesas fechadas, marcação em cima, Ronaldo perde-se no jogo, pois, ao contrário de Messi, o talento da finta curta, de passe em tabela e progressão e de abrir espaços onde eles não existem, não é o seu forte. Mas deem-lhe espaço e condições para mostrar o atleta que é, e ele pode fazer o que fez na Suécia.
Na Suécia, Ronaldo fez um jogo para a história, e, se tem marcado o quarto golo que falhou por um palmo, teria sido um jogo para a eternidade. Os brasileiros para quem Ronaldo vem sempre atrás de Messi na disputa pelo lugar de melhor do mundo — estavam finalmente rendidos à sua prestação. Como dizia o comentador da Sport TV, «talvez agora o adepto brasileiro perceba que Ronaldo não é só marqueteiro». Porque a imagem, intensa, obsessivamente trabalhada pelo marketing de Ronaldo é justamente uma das razões que os leva a preferir Messi o rapaz discreto que não exibe tatuagens, nem penteados, nem músculos, loiras ou Ferraris, e que nunca grila aos quatro ventos que é o melhor do mundo. A célebre pose de Ronaldo após a marcação do segundo golo contra a Suécia (que imagino que aqui tenha desencadeado um furor patriótico/mediático), foi assim comentada na Sport TV:
«Ele está dizendo que é o Rei» traduziu um dos comentadores. «Não, não» — corrigiu o outro — «ele está dizendo é 'eu estou aqui, passem-me a bola que eu resolvo o assunto’. Esse é o Ronaldo que a gente conhece: grande jogador, mas vaidoso como ninguém!».
Essa foi também a minha conclusão. A conclusão de quem nunca alinhou na histeria patriótica da ronaldomania, de quem achou mortalmente ridículo o Conselho de Ministros fazer um comunicado a defender a pátria porque Cristiano Ronaldo foi objecto de uma pantomina imbecil do pateta do Blatter, de quem nunca alinhou nas teorias conspirativas de que a eleição do melhor do mundo (feita pelos seleccionadores e capitães de todas as equipas de selecção) era um jogo manipulado contra o nosso candidato. De quem, com grande escândalo de alguns, defendeu que, nos últimos dois anos, pelo menos, o melhor do mundo foi Messi — com a mesma convicção com que agora defendo que, sobretudo graças à prestação contra a Suécia, mas não só, a Bola de Ouro não pode escapar este ano a Cristiano Ronaldo.
Mas o «eu estou aqui!» de Ronaldo foi uma atitude de afirmação egoísta, imprópria de um capitão de equipa, e injustíssima para com o homem que lhe fez dois passes longos fabulosos e um jogão em toda a partida — João Moutinho — e também injusta para com a assistência mortal que lhe fez Hugo Almeida, no segundo golo. No fundo, o gesto dele representa o mesmo que eu penso: que, tirando o próprio Ronaldo e João Moutinho, esta é uma selecção fraquíssima. Mas, se eu o penso e escrevo aqui, ele pode-o pensar também, mas não o pode dizer em campo.
Tudo pode e deve ser visto em perspectiva. No mundo mediatiza-do de hoje e com os valores de sociedade de hoje, há heróis repentinos, símbolos da pátria e orgulho da nação. Insisto na minha tese: um grande jogador de futebol, mesmo um genial jogador de futebol, como Cristiano Ronaldo, é apenas alguém que nasceu com um talento inato para dar chutos numa bola e trabalhou para aproveitar o seu dom. Mas a história das terras de Pernambuco, por onde agora andei, regista feitos de heroísmo, de esforço impensável e de sacrifícios sem fim, que foram obra de portugueses cujos nomes a pátria nem sequer regista e que, mesmo no seu tempo, foram muitas vezes ignorados e injustiçados. Ao pé do que eles fizeram, do ser tão que desbravaram, dos territórios imensos que descobriram, mapearam e cultivaram, da resistência que opuseram aos invasores holandeses durante mais de vinte anos, em defesa da unidade do Brasil, marcar três golos à Suécia é apenas um fait divers menor.
2- Por falar em Brasil, é com grande apreensão e tristeza que tiro uma conclusão daquilo que vi no Rio, em Salvador e no Recife, nestes dias: em minha opinião (e oxalá me engane), o Brasil não está preparado para um Mundial daqui a sete meses. Não é só a questão dos estádios estarem ou não estarem prontos, e até acredito que, mal ou bem, estarão. É tudo o resto, essencial a nível de infraestruturas: o trânsito, em qualquer das três cidades, é caótico a qualquer hora do dia; falar para o estrangeiro (para Portugal, pelo menos), enviar ou receber mensagens, continua o pesadelo de sempre; e levantar dinheiro nas caixas multibanco com um cartão estrangeiro é uma saga incompreensível. Sobretudo no Rio de Janeiro, onde tinha estado há um tempo atrás e já então constatando o atraso em que tudo se encontrava, é impressionante verificar o quanto se esperava que tivesse melhorado e não foi feito. Basta dizer que as vias de acesso entre o Galeão e a zona sul e centro, entre a zona norte e a zona sul, e entre esta e a Barra, continuam, no essencial, exactamente as mesmas que eu conheço há mais de trinta anos. É uma pena se esta cidade deslumbrante, que, além do mais, também vai acolher os Jogos Olímpicos de 2016, perder esta oportunidade histórica de proceder a uma renovação geral e profunda que evite a sua queda definitiva no pesadelo urbanístico que hoje é, por exemplo, Salvador.
3- No Brasil ainda, apanhei a transmissão em directo do jogo do FC Porto com o Nacional e constatei que no futebol a sorte também conta e muito: como se viu, aliás, pela forma como Benfica e Sporting venceram os seus jogos deste fim-de-semana. Dos três da frente do campeonato, o FC Porto foi, em minha opinião, o que melhor jogou este fim-de-semana — e o único que não venceu.
Com excepção do jogo da Taça contra o Vitória de Guimarães, há um padrão comum que se repete nos últimos jogos do FC Porto, contra Atlético de Madrid, Zenit, Belenenses e Nacional: primeiro, a equipa entra bem e começa a vencer; depois, porém, revela-se incapaz de chegar a segundo golo e matar o jogo; surge então um erro defensivo que oferece o empate ao adversário e, no final, regista derrota ou empate, com sabor amargo a injustiça. Assim foi contra o Nacional, em que, mais uma vez, todas as estatísticas demonstraram a superioridade portista. Mas as estatísticas não têm culpa que Lucho e Jackson falhem golos feitos ou que a defesa ofereça sempre um golo quando o ataque não consegue marcar dois. Nem as estatísticas podem retirar mérito à estratégia de cobra que Manuel Machado aplicou ao jogo do Nacional: recolher-se e encolher-se quando o inimigo ameaçava e, na primeira aberta deste, saltar sobre ele num ápice e enfiar-lhe a mordidela fatal. E o que mais custou é que estava a adivinhar-se o desenlace. Acontece quando um treinador joga com extremos que correm e vão ao golo sem medo e o outro prefere varejar o jogo. Li que agora Paulo Fonseca anda à procura de extremos para Janeiro, depois de os ter deitado fora em Julho. Mas alguma coisa vai mal quando o treinador é o último a perceber o que os adeptos de bancada, como eu, já perceberam há muito.
in abola