Paulo Fonseca foi um treinador teimoso e só persistiu quando já apostava na errância.
No futebol, a noção da diferença entre as duas palavras é uma absoluta raridade, uma resolução com golpe de asa só ao alcance dos melhores. Para a maioria dos que decidem, a questão nem sequer se coloca: o abandono é uma forma mais fácil de lidar com a pressão, cospe-se a pastilha elástica e já está, "simplex". Assim se compreende como as chicotadas psicológicas no futebol são, normalmente, um mero detalhe que alivia a dor, o toque de Midas do dirigente-diligente sem competência, à procura da solução fácil e do alívio momentâneo. Paulo Fonseca podia ter saído após o jogo em Coimbra? Na minha opinião, sim. Paulo Fonseca devia ter saído após a derrota em casa com o Estoril ou após o empate airoso em Frankfurt (sim, Frankfurt) para a Liga Europa? Sim. Paulo Fonseca podia ter continuado após o empate em Guimarães? Só se o presidente Pinto da Costa confundisse persistência com teimosia.
O F. C. Porto despede-se de um treinador a mais de meio da época e isso é notícia, indiscutivelmente. O estigma da comparação, nos quase 32 anos da era Pinto da Costa, esbarra em apenas quatro treinadores: Quinito, Tomislav Ivic, Octávio Machado e Victor Fernández, todos eles com guia de marcha assinada meses antes de hipotecarem o título nacional. Este ano, o divórcio evidente entre treinador e os adeptos foi uma fonte de desgaste semanal. Perante páginas tantas, empates e derrotas de sobra, recordes negativos em catadupa, futebol anónimo e convulsivo, os adeptos só pediam que não os obrigassem a pensar na saída do treinador a cada semana, uma após a outra. Já não bastava não decidir, mantendo; uma não decisão já não era uma decisão que bastasse. Eu, pelo menos, queria ouvir que saía ou ficava até ao fim. Paulo Fonseca podia ter rescindido mais cedo e agradeceria que não fosse posta em causa a sua indiscutível competência profissional em razão do desnorte psicológico e do nervosismo siderado das suas declarações públicas no último mês. Acabou por ser motivo de chacota para os adversários e de enorme preocupação para os portistas. Sofreu, inadvertidamente, uma espécie de "bullying futebolístico" dos adeptos, pela persistência na ideia de que ele seria capaz de dar a volta ao seu mundo nos momentos em que a realidade já o ultrapassava a milhas de distância (sim, é sobre o mar alto que eu escrevo). E ficou. Paulo Fonseca deu mais ao F. C. Porto no último mês do que no resto da época em que fez da errância camisola e da teimosia principal atracção. Ele pediu para sair e sabia do que falava.
Como a visão não tem marcadores para a dimensão e para a distância, é a experiência que nos dita e permite reconhecer estas características a cada momento presente.
A experiência do F. C. Porto é acreditar e manter os treinadores, dando-lhes toda a confiança e respaldo nos momento difíceis. Às vezes até ao fim, até ao momento em que se torna violento fazê-lo. Há alturas em que uma imagem me assalta: José Saramago via com o realizador Fernando Meirelles, pela primeira vez e na sobriedade da sala de projecção, o filme baseado no seu romance "Ensaio sobre a cegueira". O momento foi captado por um vídeo "amador" (imediatamente online e amplamente exibido na televisão portuguesa). O que se vê nessas imagens é um homem sem fugas, já debilitado, soltando de forma particular e velada a sua comoção e felicidade após ver uma obra que também acabava por ser sua em espelho, num momento particular da sua vida, despejando a alma em sussurros por algo que era intimamente seu. Saramago estaria longe de imaginar que uma câmara "voyeur" e a legendagem colada aos lábios permitiriam percepcionar as palavras que dizia em surdina, voz embargada e coração em alvoroço. Pornografia também é isto. Um belíssimo momento de intimidade acaba por se transformar num medonho assalto mediático. Por mim, dispenso bem a exposição pública e íntima da fragilidade dos homens, mesmo em momentos de felicidade. O que, no F. C. Porto, nem sequer era o caso.