O chamado defeso é a parte da época futebolística que eu mais temo e desprezo. Temo, porque, invariavelmente, me traz sempre noticia da venda de algum ou alguns dos melhores jogadores do meu clube (enquanto os outros ninguém cobiça e é sempre uma dor de cabeça vermo-nos livres deles). E desprezo esta parte da época porque, entre tantos negócios de compra e de venda que se cruzam, vem sempre ao de cima o particular brio profissional e amor à camisola de tantos daqueles que passamos o ano a aplaudir como ídolos nossos. Afinal, este é um mundo desprovido de valores como lealdade, dedicação, respeito pelo clube. Há excepções, notáveis, mas a regra é esta. Por mais que a história se repita, em todos os clubes e em todos os defesos, não há maneira de os adeptos meterem na cabeça que os únicos para quem esses valores têm significado são eles próprios.
Fixemo-nos no exemplo nos chamados clubes grandes - que são os que têm mais adeptos, fazem mais negócios de arromba e onde a feira de vaidades e ambições encontra melhores oportunidades para se exibir. Quando, em proveniência de um clube menor, são contratados por um grande, os jogadores vêm entusiasmados: se são portugueses, logo declaram que são adeptos daquele clube desde pequeninos; se são estrangeiros, juram que há muito tinham o sonho de jogar ali. Assinam por 4 ou 5 anos, posam com a camisola, prometem que vão ser campeões e, depois de uma visita guiada à sala de troféus do novo patrão, garantem que estão muito bem informados sobre o clube, o futebol local e o pais ou cidade de acolhimento. Mas, quando se trata de emigrantes em pais alheio, jamais os ouvimos falar depois sobre o pais ou a cidade onde estão: nenhum jogador do Real ou do Atlético de Madrid alguma vez disse que tinha visitado o Prado; nenhum jogador estrangeiro do Chelsea, do Arsenal,do Tottenham, é suspeito de se ter sido visto na National Gallery ou num teatro de Old Vic; nenhum jogador, dos que agora correm para o Mónaco, sabe coisa alguma de Monte Carlo, a não ser que é um paraíso fiscal e tem um Grande Prémio de Fórmula 1. Nunca os vimos com um livro sobre a história do pais onde estão (mas também nunca vimos um jogador de futebol com um livro, uma revista ou um jornal, nada mais que os inevitáveis headphones, que acham o cúmulo do in).
Mas retomemos o percurso dos jogadores acabados de chegar a um dos nossos grandes. Passado um a dois anos de militância clubistica, das duas uma: ou ele se revelou uma boa aquisição ou se revelou um fiasco. No primeiro caso, é certo e sabido que o clube vai ter de lhe renegociar o contrato ou ele passa a jogar desmotivado, porque, afinal, o que lhe parecera óptimo para cinco anos, ao fim de um ou dois já lhe parece pouco. Mas se ele se revelou mesmo excepcional, então já não aceita a renegociação: pressionado pelo empresário, acossado pelos tubarões europeus, ele já só quer é sair, e o clube, admitindo que não o quer também vender, só pode escolher entre esperar que alguém chegue ao montante de indemnização acordado, ou vendê-lo abaixo disso, para se livrar do que se tornou um problema. Se, porém, sucedeu o contrário, que foi o jogador revelar-se um flop, os empresários desaparecem do horizonte e as únicas propostas por ele que podem surgir são a titulo de empréstimo. Mas, como eles nunca aceitam baixar o salário em troca de poderem jogar regularmente noutro lado, o clube seu proprietário só tem como solução aceitar pagar-lhe parte do salário para que ele jogue por outro e assim diminua a folha salarial.
E depois há os casos intermédios, de jogadores que nem são um flop nem uma maravilha. É o caso de Nani, por exemplo: depois de quase dois anos sem mostrar valor nem no Manchester nem na Selecção, tornou-se um problema sem solução fácil - tanto mais que acha que está a «um outro nível» acima do dos clubes portugueses. Vários outros jogadores portugueses que tinham aqui uma óptima situação mas preferiram emigrar, sem se adaptarem, acabaram assim. Como Ricardo Quaresma: começam a descer a rampa devagarinho - Rússia, Turquia, clube inglês ou espanhol do meio da tabela - e, quando olham para o lado, não percebem bem o que lhes aconteceu, para já não lhes reconhecerem o mesmo valor. Outro caso é o de Fernando. o polvo portista. Não percebe que o seu valor é potenciado por pertencer a um clube com uma atitude competitiva especial e estar integrado numa escola de jogo que potencia as suas características. Sonha chegar à selecção do Brasil - o que é um sonho legítimo - mas como pode chegar lá um jogador com inegáveis características de lutador e destruidor de jogo, mas igualmente inegáveis lacunas técnicas (finta, passe e remate), que no Brasil são incompreensíveis? Diz agora o seu empresário que Fernando «tem o direito» de aspirar a mais altos voos. De facto, tem esse direito - embora eu, pessoalmente, o considere uma utopia e ache que em lado nenhum ele gozará do estatuto que tem no FC Porto. O problema, porém, não é dos direitos do Fernando, é dos deveres a que se obrigou quando assinou um contrato com o FC Porto. A noção de que não há direitos sem deveres correspondentes é coisa que não entra ali.
No mundo destes meninos de ouro parece que não existem outras regras nem outras realidades que não o meio em que se movem e os interesses que os mobilizam. Os contratos de trabalho são muito bons, mas só na hora de os assinar e enquanto não lhes acenarem com nada de melhor; os salários são fabulosos, mas desde que o empresário não lhes faça a cabeça com uma proposta irresistível; os países são muito acolhedores, desde que não lhes cobrem impostos nem contribuições para a Segurança Social ou que isso fique a cargo do clube; o futebol local é óptimo, o que não os impede, se as coisas correrem bem, de sucumbirem ao legítimo desejo de aspirarem a mais altos voos; as cidades onde vão morar são excelentes, desde que o clube lhes arranje uma vivenda ao pé do centro de treinos, porque o horário de trabalho de duas ou três horas por dia é muito cansativo; e a realidade que os envolve, os pobres e desempregados que gastam o dinheiro que não têm para irem ao estádio aplaudi-los, não é coisa que os incomode, visto que estão tão de passagem.
Alex Ferguson, um personagem de que nunca gostei, dizia, sobre David Beckham, uma coisa que percebo perfeitamente: que não era capaz de treinar um jogador que mudava de penteado todas as semanas. Ele via isso como demonstração de uma frivolidade que impediria Beckham de se concentrar a sério no seu trabalho. Não sei se terá sido isso que fez com que, a partir de certa altura, o menino bonito do futebol inglês tivesse deixado de evoluir como jogador. Mas Beckham limitou-se a antecipar uma coisa que Ferguson não viu, na altura: que vinha aí o tempo em que, além, de salários milionários, os grandes jogadores, os jogadores-vedeta, iriam ganhar tanto ou mais com a sua imagem e os direitos dela do que com a sua arte de dar pontapés numa bola (é o caso de Ronaldo e Messi, já de si, os dois jogadores mais bem pagos do planeta). E talvez merecesse um estudo sociológico aprofundado perceber como é que estas vedetas que se vestem como salteadores da feira de Carcavelos, que mudam de penteado todas as semanas (e cada um mais horrível do que o outro), que se barram de tatuagens como as torradas de manteiga, e que ganham fortunas inimagináveis arruinando os clubes, são os únicos ídolos incontestados dos tempos de hoje.
a bola
Fixemo-nos no exemplo nos chamados clubes grandes - que são os que têm mais adeptos, fazem mais negócios de arromba e onde a feira de vaidades e ambições encontra melhores oportunidades para se exibir. Quando, em proveniência de um clube menor, são contratados por um grande, os jogadores vêm entusiasmados: se são portugueses, logo declaram que são adeptos daquele clube desde pequeninos; se são estrangeiros, juram que há muito tinham o sonho de jogar ali. Assinam por 4 ou 5 anos, posam com a camisola, prometem que vão ser campeões e, depois de uma visita guiada à sala de troféus do novo patrão, garantem que estão muito bem informados sobre o clube, o futebol local e o pais ou cidade de acolhimento. Mas, quando se trata de emigrantes em pais alheio, jamais os ouvimos falar depois sobre o pais ou a cidade onde estão: nenhum jogador do Real ou do Atlético de Madrid alguma vez disse que tinha visitado o Prado; nenhum jogador estrangeiro do Chelsea, do Arsenal,do Tottenham, é suspeito de se ter sido visto na National Gallery ou num teatro de Old Vic; nenhum jogador, dos que agora correm para o Mónaco, sabe coisa alguma de Monte Carlo, a não ser que é um paraíso fiscal e tem um Grande Prémio de Fórmula 1. Nunca os vimos com um livro sobre a história do pais onde estão (mas também nunca vimos um jogador de futebol com um livro, uma revista ou um jornal, nada mais que os inevitáveis headphones, que acham o cúmulo do in).
Mas retomemos o percurso dos jogadores acabados de chegar a um dos nossos grandes. Passado um a dois anos de militância clubistica, das duas uma: ou ele se revelou uma boa aquisição ou se revelou um fiasco. No primeiro caso, é certo e sabido que o clube vai ter de lhe renegociar o contrato ou ele passa a jogar desmotivado, porque, afinal, o que lhe parecera óptimo para cinco anos, ao fim de um ou dois já lhe parece pouco. Mas se ele se revelou mesmo excepcional, então já não aceita a renegociação: pressionado pelo empresário, acossado pelos tubarões europeus, ele já só quer é sair, e o clube, admitindo que não o quer também vender, só pode escolher entre esperar que alguém chegue ao montante de indemnização acordado, ou vendê-lo abaixo disso, para se livrar do que se tornou um problema. Se, porém, sucedeu o contrário, que foi o jogador revelar-se um flop, os empresários desaparecem do horizonte e as únicas propostas por ele que podem surgir são a titulo de empréstimo. Mas, como eles nunca aceitam baixar o salário em troca de poderem jogar regularmente noutro lado, o clube seu proprietário só tem como solução aceitar pagar-lhe parte do salário para que ele jogue por outro e assim diminua a folha salarial.
E depois há os casos intermédios, de jogadores que nem são um flop nem uma maravilha. É o caso de Nani, por exemplo: depois de quase dois anos sem mostrar valor nem no Manchester nem na Selecção, tornou-se um problema sem solução fácil - tanto mais que acha que está a «um outro nível» acima do dos clubes portugueses. Vários outros jogadores portugueses que tinham aqui uma óptima situação mas preferiram emigrar, sem se adaptarem, acabaram assim. Como Ricardo Quaresma: começam a descer a rampa devagarinho - Rússia, Turquia, clube inglês ou espanhol do meio da tabela - e, quando olham para o lado, não percebem bem o que lhes aconteceu, para já não lhes reconhecerem o mesmo valor. Outro caso é o de Fernando. o polvo portista. Não percebe que o seu valor é potenciado por pertencer a um clube com uma atitude competitiva especial e estar integrado numa escola de jogo que potencia as suas características. Sonha chegar à selecção do Brasil - o que é um sonho legítimo - mas como pode chegar lá um jogador com inegáveis características de lutador e destruidor de jogo, mas igualmente inegáveis lacunas técnicas (finta, passe e remate), que no Brasil são incompreensíveis? Diz agora o seu empresário que Fernando «tem o direito» de aspirar a mais altos voos. De facto, tem esse direito - embora eu, pessoalmente, o considere uma utopia e ache que em lado nenhum ele gozará do estatuto que tem no FC Porto. O problema, porém, não é dos direitos do Fernando, é dos deveres a que se obrigou quando assinou um contrato com o FC Porto. A noção de que não há direitos sem deveres correspondentes é coisa que não entra ali.
No mundo destes meninos de ouro parece que não existem outras regras nem outras realidades que não o meio em que se movem e os interesses que os mobilizam. Os contratos de trabalho são muito bons, mas só na hora de os assinar e enquanto não lhes acenarem com nada de melhor; os salários são fabulosos, mas desde que o empresário não lhes faça a cabeça com uma proposta irresistível; os países são muito acolhedores, desde que não lhes cobrem impostos nem contribuições para a Segurança Social ou que isso fique a cargo do clube; o futebol local é óptimo, o que não os impede, se as coisas correrem bem, de sucumbirem ao legítimo desejo de aspirarem a mais altos voos; as cidades onde vão morar são excelentes, desde que o clube lhes arranje uma vivenda ao pé do centro de treinos, porque o horário de trabalho de duas ou três horas por dia é muito cansativo; e a realidade que os envolve, os pobres e desempregados que gastam o dinheiro que não têm para irem ao estádio aplaudi-los, não é coisa que os incomode, visto que estão tão de passagem.
Alex Ferguson, um personagem de que nunca gostei, dizia, sobre David Beckham, uma coisa que percebo perfeitamente: que não era capaz de treinar um jogador que mudava de penteado todas as semanas. Ele via isso como demonstração de uma frivolidade que impediria Beckham de se concentrar a sério no seu trabalho. Não sei se terá sido isso que fez com que, a partir de certa altura, o menino bonito do futebol inglês tivesse deixado de evoluir como jogador. Mas Beckham limitou-se a antecipar uma coisa que Ferguson não viu, na altura: que vinha aí o tempo em que, além, de salários milionários, os grandes jogadores, os jogadores-vedeta, iriam ganhar tanto ou mais com a sua imagem e os direitos dela do que com a sua arte de dar pontapés numa bola (é o caso de Ronaldo e Messi, já de si, os dois jogadores mais bem pagos do planeta). E talvez merecesse um estudo sociológico aprofundado perceber como é que estas vedetas que se vestem como salteadores da feira de Carcavelos, que mudam de penteado todas as semanas (e cada um mais horrível do que o outro), que se barram de tatuagens como as torradas de manteiga, e que ganham fortunas inimagináveis arruinando os clubes, são os únicos ídolos incontestados dos tempos de hoje.
a bola